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“(…) É tão triste ouvir o cínico Horacio que deseja um amor passaporte, amor alpinista, amor chave, amor revólver, amor que lhe dê os mil olhos de Argos, a ubiquidade, o silêncio no qual a música é possível, a raiz na qual se poderia começar a tecer uma língua. E é ridículo porque tudo isso dorme um pouco em ti, seria suficiente submergir-te num copo de água, como uma flor japonesa, e estou certo de que, pouco a pouco, começariam a brotar pétalas coloridas, as formas curvas aumentariam, a beleza cresceria. Doadora de infinito, eu não sei tomar, perdoa-me. Tu pareces oferecer-me uma maçã e eu deixei os dentes sobre a mesa da cabeceira. Stop, tudo já está bem, assim. Também sei ser grosseiro, note bem. Mas note bem, porque não é gratuito.

Por que stop? Por medo de começar as fabricações, são tão fáceis. Tira-se uma ideia de algum lugar, um sentimento de outra estante, amarra-se tudo com a ajuda de palavras, cadelas negras: e resulta que te amo. Total parcial: te amo. Total geral: te amo. Muitos amigos meus vivem assim, sem falar de um tio e dois primos, convencidos do amor-que-sentem-por-suas-esposas. Da palavra aos atos, meu amigo; em geral, sem verba não há comida. Aquilo a que muita gente chama amar consiste em escolher uma mulher e casar com ela. Escolhem, juro, já os vi. Como se se pudesse escolher no amor, como se amar não fosse um raio que quebra os ossos e nos deixa paralisados no meio do pátio. Tu dirás que eles escolhem porque-a-amam; creio que é o contrário. Não se pode escolher Beatriz, não se pode escolher Julieta. Não podemos escolher a chuva que nos vai encharcar até os ossos quando saímos de um concerto.”

 

(Julio Cortázar, O Jogo da Amarelinha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. Tradução de Fernando de Castro Ferro, pp. 482-483)

“Não, mas pensando francamente, o mais absurdo dessas vidas que pretendemos viver é seu falso contato. Órbitas separadas, de vez em quando duas mãos que se apertam, uma conversa de cinco minutos, um dia nas corridas de cavalos, uma noite na ópera, um velório onde todos se sentem um pouco mais unidos (e é certo; mas a hora da união se acaba depressa). E, ao mesmo tempo, vive-se convencido de que os amigos existem, de que o contato existe, de que os acordos ou os desacordos são profundos e permanentes. Como nos odiamos todos, sem saber que carinho é a forma presente desse ódio, e como a razão do ódio profundo é esta descentração, o espaço intransponível entre uma pessoa e outra, entre isto e aquilo. Todo carinho é uma patada ontológica, sim, uma tentativa de apoderar-se daquilo que é inapoderável (…)”.

(Julio Cortázar, O Jogo da Amarelinha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. Tradução de Fernando de Castro Ferro, pág. 447)

o-jogo-da-amarelinha                A maioria das pessoas só conhece um, mas a verdade é que existem (pelo menos) dois tipos de labirintos: os profanos e os sagrados. Os profanos são os mais comuns: aqueles em que nos deparamos com diversos caminhos sem saída, confusões, ilusões: aqueles que nos fazem nos perder tentando conseguir sair. Mas até o Renascimento, em muitos locais religiosos (pelo menos na França), havia um outro tipo de labirinto: o sagrado, com apenas um ou dois caminhos possíveis e geralmente circulares, cujo objetivo era chegar ao centro – acreditava-se que andar por eles era uma forma de se encontrar e de ter contato com algo maior que si mesmo (daí ser circular: forma sagrada, perfeita, infinita).

                Basta olhar para a capa da edição da Civilização Brasileira de O Jogo da Amarelinha para intuir que o romance tem qualquer coisa de labiríntico, de vertiginoso. E minha singela homenagem ao querido-queridíssimo Cortázar, neste que é o ano do centenário de seu nascimento, foi começar 2014 entrando neste labirinto, sem saber se para me perder ou para me encontrar. É difícil escrever sobre este romance por muitos motivos, mas o mais óbvio é porque, como ele mesmo diz no “Tabuleiro de Direção” que vem antes da história, “à sua maneira, este livro é muitos livros, mas é, sobretudo, dois livros”: podemos escolher jogar ou não. Explico: caso o leitor decida começar pelo capítulo 1, o livro acaba no capítulo 56, depois do qual há três estrelinhas que indicam que o livro chegou mesmo ao fim – quer dizer, para quem decidir ler da forma convencional, começando do começo, os capítulos de 57 a 155 são desnecessários e não farão muito sentido (creio eu) se lidos em ordem cronológica. Claro, este não foi o livro que eu escolhi ler (embora eu não tenha dúvidas de que ele seja ótimo e eu talvez devesse lê-lo uma hora dessas), então não há muito que eu possa falar sobre ele. Ainda.

      Mas há outra possibilidade apresentada pelo livro, muito mais divertida: podemos começar pelo capítulo 73 e ir lendo conforme os números indicados no final de cada capítulo: então, do capítulo 73 passa-se ao 1, ao 2, ao 116, ao 3, ao 84… Engraçado é que, se do primeiro jeito o livro acaba definitivamente em um ponto que parece ser muito cedo, neste segundo livro possível a história não acaba. Não acaba porque o último capítulo manda que a gente vá para o penúltimo, que manda que a gente vá para o último, em um movimento circular. É um pouco como se não se chegasse a lugar nenhum e, a princípio, me deu uma sensação esquisita de que, qualquer que seja a maneira que decidamos ler o livro, é impossível chegar ao “Céu” do Jogo da Amarelinha. E o romance é um pouco sobre isso também: sobre Horacio Oliveira, um argentino que vive em Paris e que está o tempo todo procurando caminho, saída, sentido, este Céu.

“(…) O jogo da amarelinha se joga com uma pequena pedra que é preciso empurrar com a ponta do sapato. Ingredientes: uma calçada, uma pedrinha, um sapato e um belo desenho feito com giz, preferivelmente colorido. No alto, fica o Céu, embaixo a Terra, é muito difícil chegar com a pedrinha ao Céu, quase sempre se calcula mal e a pedra sai do desenho. Pouco a pouco, porém, vai-se adquirindo a habilidade necessária para salvar as diferentes casinhas (caracol, retângulo, fantasia, esta pouco usada) e um dia se aprende a sair da Terra e levar a pedrinha até o Céu, até entrar no Céu (…); o pior é que, justamente nesse momento, quando quase ninguém ainda aprendeu a levar a pedra até o Céu, a infância acaba de repente e se chega aos romances, à angústia do divino foguete, à especulação de outro Céu ao qual também é necessário aprender a chegar. E, por se ter saído da infância (…), esquece-se de que, para alcançar o Céu, é preciso ter, como ingredientes, uma pedrinha e a ponta de um sapato.” (p. 252)*

          O Jogo da Amarelinha é um livro com trechos bastante filosóficos, paródicos, complexos. Mas me pergunto se o que acontece com ele não é um pouco o que acontece também com filmes como o Cidadão Kane: de que as pessoas ficam com medo só de saber que é considerado um dos melhores filmes do mundo, sem perceber que, no fundo, ele é, também, apenas uma grande molecagem. Esta ordem maluca de capítulos dá ao Jogo da Amarelinha uma aparência de labirinto, é verdade, talvez o labirinto mesmo em que Oliveira se sente tanto em Paris como em Buenos Aires (talvez o labirinto que seja a vida). Cheio de referências e frases em francês e inglês sem nenhuma tradução, ele acaba por se tornar uma leitura difícil algumas vezes, mas é também um jogo, uma brincadeira e volta e meia o livro nos mostra a língua.

              Tudo em O Jogo da Amarelinha parece ter essa face dupla – os locais: Paris e Buenos Aires; Maga e Talita (as duas mulheres que cruzam a vida de Horacio); o real e a loucura; o sério e a brincadeira; as formas de ler, que são pelo menos duas. É um romance entre o profano e o sagrado: que faz o leitor se perder para, quem sabe, achar-se na confusão. Um labirinto, sim, mas que também nos concede, de um jeito bastante surpreendente e apaixonante, o poder da escolha: uma fresta de ar puro; um gostinho de liberdade em meio ao caos.

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* Julio Cortázar, O Jogo da Amarelinha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. Tradução de Fernando de Castro Ferro.

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Este é um post para o Desafio Literário do Tigre 2014, do Elvis Costelo gritou meu nome, sobre o tema de janeiro: um livro que esteja há muito tempo na estante. Aqui você fica sabendo um pouquinho mais sobre o projeto e, aqui, vê a lista de possibilidades que eu montei no começo do ano.

                Confesso que ainda tenho minha conta ativada do Orkut e às vezes entro nela. Hoje foi uma dessas vezes: é uma sensação estranha e engraçada, de estar andando entre os destroços de uma casa ainda cheia de retratos (alguns rasgados, algumas molduras rachadas), mas vazia. É um lugar em que o tempo, ao contrário do que acontece no Facebook, passa muito devagar. É como aquela cena de Titanic em que a câmera vai entrando no navio já naufragado. É um lugar em que o tempo parou e só há resquícios, fantasmas. Mas eu gosto de lá, às vezes até escrevo em comunidades, é quase como escrever uma mensagem, colocar dentro de uma garrafa e jogar no mar.

No capítulo 21 de O Jogo da Amarelinha, livro que estou lendo agora, está escrito:

“A mesma coisa acontece a todo mundo, a estátua de Jano é um esbanjamento inútil, na realidade, depois dos quarenta anos nós temos o nosso verdadeiro rosto na nuca, olhando desesperadamente para trás.”

Não tenho muita certeza se, por já ter metade dos quarenta, meu segundo rosto já começou a nascer na minha nuca e, por isso, volta e meia eu tenho estes rompantes de nostalgia ou se, simplesmente, com meu rosto único, eu estou tão perdida que fico girando em torno de mim mesma sem saber exatamente qual é a frente e qual é a parte de trás, feito um cachorro correndo atrás do próprio rabo. É que, acho, quando a gente não sabe exatamente para onde ir, qualquer direção se faz caminho, mesmo a direção do regresso.

“Sim, mas quem nos curará do fogo surdo, do fogo sem cor que corre, ao anoitecer, pela rue de la Huchette, saindo dos portais carcomidos, do pequenos vestíbulos, do fogo sem imagem que lambe as pedras e ataca os vãos das portas, como faremos para nos lavar da queimadura doce que persiste, que insiste em durar, aliada ao tempo e à recordação, às substâncias pegajosas que nos retém deste lado, e que nos queimará docemente até nos calcinar?” (pág. 435)*

Já faz um bom tempo que O Jogo da Amarelinha está na minha estante, pelo menos uns dois anos. Lembro de ter começado a ler uma vez (a frase acima, a primeira do livro para quem começa no capítulo 73, então, nem sei mais quantas vezes li) e já até postei um trecho lindíssimo do livro, mas parei porque… por quê? Acho que foi só a roda viva que levou o livro para lá, porque o primeiro capítulo já me encantou (de novo) – estou me apaixonando pelo livro e mais uma vez pelo Cortázar, um dos meus autores favoritos. Tenho grandes esperanças de, neste mês, finalmente, brincar até o fim.

“(…) Tudo é escrita, ou seja, fábula. Mas para que nos serve a verdade que tranquiliza o honesto proprietário? A nossa verdade possível tem de ser invenção, ou seja, literatura, pintura, escultura, agricultura, piscicultura, todas a turas deste mundo. Os valores, turas, a santidade, uma tura, a sociedade, uma tura, o amor, pura tura, a beleza, tura das turas.” (pág. 436)*

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* (Julio Cortázar, O Jogo da Amarelinha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. Tradução de Fernando de Castro Ferro)

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Este é um post para o Desafio Literário do Tigre 2014, do Elvis Costelo gritou meu nome, sobre o tema de janeiro: um livro que esteja há muito tempo na estante. Aqui você fica sabendo um pouquinho mais sobre o projeto e, aqui, vê a lista de possibilidades que eu montei no começo do ano.

              “Toco a tua boca, com um dedo toco o contorno da tua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se pela primeira vez a tua boca se entreabrisse e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e te desenha no rosto, uma boca eleita entre todas, com soberana liberdade eleita por mim para desenhá-la com minha mão em teu rosto e que por um acaso, que não procuro compreender, coincide exatamente com a tua boca que sorri debaixo daquela que a minha mão te desenha.

                 Tu me olhas, de perto tu me olhas, cada vez mais de perto e, então, brincamos de ciclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, aproximam-se, sobrepõem-se e os ciclopes se olham, respirando indistintas, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem com um perfume antigo e um grande silêncio. Então, as minhas mãos procuram afogar-se nos teus cabelos, acariciar lentamente a profundidade do teu cabelo enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragrância obscura. E se nos mordemos, a dor é doce; se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu te sinto tremular contra mim, como uma lua na água.”

(Julio Cortázar, O Jogo da Amarelinha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. Tradução de Fernando de Castro Ferro)

Uma mistura de guache e gauche.

Rebobinando

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