A_Autobiografia_de_Alice_B_Toklas               Em meio a algumas biografias que tenho aqui em casa, a que acabei escolhendo para ler neste mês do DL SDDS Augusto foi a Autobiografia de Alice B. Toklas, da Gertrude Stein. Sim, é exatamente o que parece: nesse livro, a Gertrude se coloca no lugar de sua companheira, a Alice, e escreve a história toda como se fosse ela. “Ei, mas com esse livro você está roubando!”, já posso ouvir a multidão indignada. A loucura toda é que biografias costumam ser diferenciadas de romances justamente por isso: pelo caráter não ficcional da coisa toda. Romances são inventados e biografias não, certo?

                Mas será? Será mesmo? Será que é possível saber exatamente o que aconteceu com outra pessoa (ou até consigo mesmo)? Será que dá para narrar o que quer que seja com objetividade? Será que não é possível que, tendo vivido e morado com a Alice, a biografia de uma não seja assim tão diferente da biografia da outra? Será que, em última instância, toda biografia não é um pouco ficção?

Gil (Owen Wilson), Hemingway (Corey Stoll) e Gertrude (Kathy Bates) em Meia-Noite em Paris

Gil (Owen Wilson), Hemingway (Corey Stoll) e Gertrude (Kathy Bates) em Meia-Noite em Paris

          O que é incrível nesse livro é que ele não serve apenas para matar a nossa curiosidade pela Paris dos anos 1910 e 1920, aquela Paris dourada que o protagonista de Meia-Noite em Paris (Woody Allen, 2011), não por acaso, queria tanto ter conhecido e que ele terminar por visitar. E matar a curiosidade por essa Paris já seria um objetivo mais do que louvável, na minha opinião. As histórias são ótimas. Picasso, por exemplo: grande amigo de Gertrude que foi, ele aparece particularmente mais do que os outros pintores e escritores que estavam na Cidade Luz naquele momento nesse livro e sempre como um personagem completamente encantador.

Ele [Picasso] teve uma reação característica quando viu a primeira fotografia de um arranha-céu. Meu Deus, disse ele, imagine as pontadas de ciúme que um amante teria esperando sua amada subir todos esses lances de escada até o estúdio dele no último andar.* (pág. 54)

          A autobiografia acaba se tornando, também, um pouco a biografia de todo mundo, que, aliás, é o título de outro livro dela (Autobiografia de Todo Mundo). Também é interessantíssimo ler sobre os anos da Primeira Guerra Mundial e como ela mudou completamente o mundo em torno deles todos.

[…] Primeiro fomos a Barcelona. Era extraordinário ver tantos homens nas ruas. Não imaginei que sobrassem tantos homens no mundo. Nossos olhos tinham se acostumado tanto a ruas sem homens, os poucos homens que se viam eram fardados e portanto não homens mas soldados, que ver aquela quantidade de homens andando para cima e para baixo das Ramblas era intrigante.* (pág 164)

Gertrude, Basket e Alice

Gertrude, Basket e Alice

                Mas, além disso tudo, A autobiografia de Alice B. Toklas é um livro notável porque não se limita a isso: desse jeito bem sutil, através da capa (que mostra essa contradição de uma pessoa chamada Gertrude ter escrito a autobiografia de uma pessoa chamada Alice), ele está questionando todos esses limites de gêneros literários e sintetizando toda essa bagunça (deliciosa, na minha opinião) que a literatura moderna fez.

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Pequena observação anexa sobre genialidade

[…] Posso dizer que só três vezes na vida encontrei gênios e a cada vez um sino tocou dentro de mim e eu não estava errada, e posso dizer que em cada caso foi antes do reconhecimento geral da qualidade de gênio neles. Os três gênios de que quero falar são Gertrude Stein, Pablo Picasso e Alfred Whitehead.* (pág. 11).

         Achei esse trecho muito engraçado. Modéstia para quê? E depois comecei a pensar que genialidade, no fundo, talvez, seja só uma questão de convencer a si mesmo tão bem de que se é um gênio que a sua sinceridade seja 50% da razão pela qual as pessoas acreditam que você, realmente, é genial. Claro, para os outros 50% vai chão.

      Não sei se Gertrude Stein foi realmente um gênio, não li outros livros dela. Mas conheço um verso de um poema dela – possivelmente um dos versos mais famosos em língua inglesa – que talvez me faça dar o braço a torcer. O verso é “Rose is a rose is a rose is a rose”** e, convenhamos, depois de séculos inventando significados ocultos para elas e as usando como metáforas, dizer que uma rosa é () uma rosa é o jeito mais original de todos de falar da flor. (Eu não sei vocês, mas eu acho lindo).

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* STEIN, Gertrude. A autobiografia de Alice B. Toklas. São Paulo: Cosac Naify, 2009. Trad. de José Rubens Siqueira.

** O poema chama “Sacred Emily”.

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Este é um post para o Desafio Literário SDDS Augusto, nomeado por mim e criado pela Gabi. Este livro é o do mês de maio, em que o combinado era ler uma biografia. Aqui você pode ver a minha a minha lista de possíveis leituras para os próximos meses.